fonte: O Globo
Em 1986, Nelson Rodrigues dos Santos foi a Brasília para participar da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde. Dois anos depois, o que fora discutido no encontro de secretários municipais de todo o país ajudou a formular o projeto do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição Federal em 1988.
O médico, que foi secretário municipal de Saúde de Campinas de 1983 a 1988, mudou-se então de vez para Brasília e começou a atuar no Ministério da Saúde. Lá ficou até 2005. Hoje, aos 84 anos, o professor aposentado da Unicamp e um dos líderes da reforma sanitária no país diz que o SUS é “escaldado”. Para ele, nos 32 anos que se passaram desde a Constituição, “o governo federal sempre puxou o tapete” e “nunca cumpriu sua parte no financiamento do sistema”.
Em entrevista ao GLOBO, ele afirma que o SUS era “invisível” até a pandemia e sobreviveu graças ao comprometimento dos profissionais de saúde e aos recursos de estados e municípios. Depois da pandemia, completa, “é o momento de o governo finalmente valorizar o SUS”.
Como o senhor avalia o trabalho do SUS durante a pandemia?
A atuação do SUS na pandemia se dá basicamente através dos estados e dos municípios. O Brasil é um dos pouquíssimos países, ao lado dos Estados Unidos, em que o poder federal não assumiu as suas responsabilidades constitucionais. A lei que criou o SUS reconhece e obriga a igual responsabilidade para o poder federal, para os estados e os municípios, numa gestão tripartite. No caso da Covid-19, estados e municípios pressionaram para que o SUS continuasse funcionando com a articulação entre as três esferas. Isso aconteceu em certa medida até a saída do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (em abril). Antes de o Mandetta ser demitido, a Presidência da República e o Ministério da Economia já vinham puxando a rédea do ministro, e ele, assim mesmo, conseguiu agir. Mas logo caiu, e o governo federal não é só um ministro, mas o conjunto. Então, mesmo com o Mandetta, o governo já agia a 10%. Com a queda dele, isso praticamente zerou.
Sem o comando federal, como ficou a resposta do SUS?
A rapidez (de disseminação do coronavírus) pegou os governos de todos os países de calça curta. Quando chegou ao Brasil, chegou com mais de um mês de atraso. O Brasil teve janeiro todo e uma parte de fevereiro para se preparar para o fato de que chegaria rápido aqui também. O governo federal teve culpa, porque retardou a resposta achando que seria uma gripezinha. Então, estados e municípios tiveram que arregaçar as mangas, fizeram das tripas coração e se puseram em campo para tentar atender, sem o governo federal, a crise da Covid-19. Os secretários municipais de Saúde estão diretamente relacionados com os secretários estaduais. E a pressão dos municípios sobre o estados foi enorme, e houve uma aliança que, nos 30 anos do SUS, nunca tinha acontecido. Muitos municípios criaram centrais de atendimento por telefone, criaram números de Whatsapp, para informar a população. Esse é um trabalho importante, porque você não pode ter salas de espera de ambulatórios cheios, mas também não pode deixar de atender outras doenças.
Essa gestão tripartite, com o protagonismo dos municípios e estados, permitiu que o SUS funcionasse mesmo sem um comando federal?
Sim. Nos 30 anos do SUS, tiveram outros ministros da Saúde e outros presidentes, que não foram muito bonzinhos, não. O SUS é escaldado. Os ministros da Saúde sempre passaram muito apertado, porque os ministros da Economia nunca viram com bons olhos o SUS, sempre o espremeram e repassaram pouco dinheiro. O governo federal nunca deixou o SUS se desenvolver como está na Constituição, mas, de qualquer maneira, nos outros governos se avançou um pouco mais do que agora. O governo atual radicalizou e cortou totalmente a relação do Ministério da Saúde com estados e municípios. Quanto ao financiamento, o governo federal sempre puxou o tapete e nunca cumpriu a parte dele. O financiamento do SUS só subiu às custas principalmente dos municípios.
Especialistas dizem que o SUS chegou à pandemia enfraquecido. O senhor concorda?
Sim. Apesar de estar tão enfraquecido por esse histórico de nunca ter sido prioridade do governo federal, tem um outro lado surpreendente. Ainda assim, com todo esse prejuízo e tudo desabando nas costas deles, o que pode ser feito no Brasil contra a Covid é às custas de grande esforço dos estados e municípios. A compra de equipamentos, por exemplo, cairia a um terço do preço se fosse feita em escala, pelo governo federal. Como o governo não queria prestigiar o combate à Covid, ele se recusou a fazer essas compras. Então, os estados e os municípios correram para usar o que podiam das permissões legais para importar equipamento às pressas, porque o povo estava morrendo. O papel do governo federal é fazer uma estratégia combinada com estados e municípios.
Que diferença faz ter um sistema público de saúde, sem um comando federal e sem a devida valorização pelo governo?
Depois de 30 anos sendo maltratados pelo governo, nós não acreditávamos que ia sobrar energia e competência para fazer tanta coisa que está sendo feita. Mesmo assim, os gestores e profissionais arregaçaram as mangas e foram ajudar a população. Essa solidariedade e essa energia a favor da população surpreendeu todo mundo. De março para cá, o Brasil inteiro olhou para o SUS de uma maneira que nunca tinha enxergado antes. Antes da pandemia, o SUS estava invisível e se tornou visível agora por causa dessa energia e da solidariedades dos profissionais de saúde. Quando a pandemia estiver mais controlada, é o momento de o SUS passar a ser muito mais respeitado pelas autoridades federais, e de o governo finalmente valorizar e colocar mais dinheiro no SUS.
Numa pesquisa do Datafolha de 2018, 89% dos entrevistados classificaram a saúde (pública ou privada) como péssima, ruim ou regular. O senhor acha que a população também pode passar a valorizar mais o SUS?
Isso é por causa das famosas filas (de espera nos hospitais e postos de saúde). Esse olhar pode ser mudado. A população tem razão e sofre. A maior parte das consultas demora meses, tem exames que levam até um ano para se conseguir agendar. Isso é um sofrimento que não era para estar acontecendo. Se a lei do SUS fosse cumprida, não era para acontecer isso. Acredito que, se a população tiver conhecimento de quem a está atendendo, e isso está começando a acontecer, só terá a agradecer.